A raiva é uma emoção básica, universal e necessária para a autoproteção. Ela nos alerta sobre limites invadidos, injustiças sofridas e necessidades não atendidas. No entanto, para crianças que tiveram vínculos interrompidos ou experiências de negligência e violência, a raiva pode se tornar uma expressão constante de dor acumulada e desorganização emocional.
John Bowlby, em sua teoria do apego, nos lembra que a criança precisa de uma figura de referência sensível e disponível para desenvolver segurança emocional. Sem esse adulto seguro, ela não aprende a reconhecer, nomear e regular suas emoções — especialmente as mais intensas, como a raiva.
Do ponto de vista da neurociência, sabemos que o cérebro da criança em desenvolvimento depende da interação com o ambiente para aprender a se autorregular. A corregulação emocional — ou seja, a capacidade do adulto de acolher e acompanhar emocionalmente a criança — é um fator essencial nesse processo. Quando um adulto se mantém presente, empático e firme diante da explosão de raiva de uma criança, ele não só ajuda a acalmar, mas também ensina, com o próprio corpo, como navegar por emoções difíceis.
No acolhimento institucional e nas famílias adotivas, a corregulação ganha ainda mais importância.
Segundo as Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento (2009) e o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (2006), é dever dos adultos — sejam técnicos ou cuidadores — garantir cuidados de qualidade, respeitando as especificidades de cada trajetória. Isso inclui reconhecer que manifestações de raiva podem ser formas de expressão de sofrimento e necessidades não verbalizadas.
O que fazer diante da raiva de uma criança acolhida ou adotada?
Respirar e se regular antes de intervir: o adulto é o termômetro emocional do ambiente.
Nomear a emoção: “Você está com raiva porque queria que fosse diferente, né?”
Oferecer contenção física e emocional: “Eu estou aqui com você, vamos passar por isso juntos.”
Evitar punições e rótulos: a criança precisa ser compreendida, não rotulada como “agressiva” ou “malcriada”.
Trabalhar o PIA (Plano Individual de Atendimento) em parceria com a rede, promovendo ações de escuta e estratégias terapêuticas para que a criança encontre outras formas de expressar suas doresPIA SAICA.
Sentir raiva não é o problema. O problema é quando a raiva não encontra espaço seguro para ser acolhida.
Adultos que desejam adotar, profissionais de acolhimento e famílias adotivas precisam estar preparados para enfrentar essa emoção com empatia, limites saudáveis e presença afetuosa. Quando o adulto não recua diante da raiva, mas a abraça com firmeza e cuidado, ele se torna uma ponte de cura entre o passado de dor e um futuro possível de afeto e pertencimento.
Kelly Caraça
Psicóloga | Especialista em Garantia de Direitos e Políticas de Cuidado da Criança e do Adolescente
Supervisora e Formadora em Acolhimento Institucional e Processos de Adoção
"Acolher emoções difíceis é o primeiro passo para construir vínculos seguros."
Instagram: @kellycaraca
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