Adotar é também ajudar a elaborar perdas
Toda criança em acolhimento já perdeu muito antes de encontrar sua nova família: perdeu o vínculo com seus pais de origem, com os irmãos (em muitos casos), com a casa, a escola, a comida de sempre, os cheiros e até com o próprio sobrenome. Ao ser adotada, ela precisa se despedir do que conhecia para abrir espaço para o novo — ainda que o novo seja amoroso e seguro.
Esse processo é doloroso. E, como todo luto, ele exige tempo, escuta e presença.
Segundo a Teoria do Apego de John Bowlby, a separação de uma figura de vínculo primário, sem que haja tempo para elaboração, pode gerar reações emocionais intensas: ansiedade, resistência ao afeto, dificuldades de confiar, agressividade ou um aparente “não sentir nada”. A criança está tentando proteger-se de sofrer novamente.
“Mas eu só quero dar amor!” — E isso é essencial. Mas também é preciso:
Entender que o luto não é rejeição
Quando a criança chora pela antiga casa, menciona a mãe biológica ou se isola, ela não está rejeitando a nova família. Ela está expressando saudade, medo, confusão. É possível amar o que está chegando sem deixar de sentir falta do que se perdeu.
Validar os sentimentos dela
Frases como “Você está aqui agora, esquece isso” podem ser bem-intencionadas, mas invalidam a dor. Prefira: “Deve estar sendo difícil lembrar disso”, “Quer me contar mais sobre ela?”, “Pode chorar, estou aqui”.
Ser previsível e constante
O cérebro da criança em luto precisa de previsibilidade para se sentir seguro. Horários, rotinas, promessas cumpridas e rituais de afeto (como o beijo de boa noite ou o lanche preferido) são fundamentais para a reconstrução da confiança.
Acolher com criatividade
Histórias, livros sobre perdas, desenhos e recursos lúdicos são formas eficazes de ajudar a criança a elaborar seus sentimentos, especialmente quando ela ainda não tem vocabulário para expressá-los.
Escutar com o coração
Mais do que dar respostas prontas, a criança precisa saber que tem com quem dividir sua dor. Estar presente — mesmo em silêncio — é, muitas vezes, o melhor manejo.
Buscar apoio qualificado
A adoção é um caminho lindo, mas também complexo. O acompanhamento psicológico especializado pode ser uma rede essencial para ajudar a família a entender as fases da criança e oferecer suporte emocional a todos.
Para a família, uma verdade essencial:
Você não precisa ser o “salvador” da criança. Você precisa ser refúgio seguro. Um porto onde ela possa chorar suas perdas, duvidar do amor, testar seus limites e, mesmo assim, ser acolhida com firmeza e afeto.
Como dizem os estudos do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, adotar é mais do que oferecer uma casa — é oferecer um novo vínculo confiável e duradouro.
Kelly Caraça
Psicóloga | Especialista em Garantia de Direitos e Políticas de Cuidado da Criança e do Adolescente
Supervisora e Formadora em Acolhimento Institucional e Processos de Adoção
"Acolher emoções difíceis é o primeiro passo para construir vínculos seguros."
Instagram: @kellycaraca
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